sexta-feira, 26 de agosto de 2011

O capitalismo de Estado brasileiro

Por raquel_
Da CartaCapital
Nação cartelizada
Vladimir Safatle 25 de agosto de 2011 às 17:54h

Com Lula, o Brasil reconstruiu o capitalismo de Estado, mas não escapou à tendência de formação dos grandes oligopólios. Foto: The Staalmeesters, Rembrandt

A história é o reino dos retornos. Não são poucas as vezes em que nos vemos obrigados a descrever situações contemporâneas através da recuperação de conceitos que pareciam relegados aos empoeirados livros de história das ideias. É bem provável que precisemos de uma recuperação desse tipo para dar conta da natureza e do destino do capitalismo brasileiro. Não que a realidade brasileira seja necessariamente arcaica. Ao contrário, talvez ela tenha se tornado, nos últimos anos, particularmente avançada. Isto no sentido de particularmente capaz de expor processos que devem se transformar em hegemônicos nos países ditos centrais. Vivemos uma situação atípica, na qual certos países periféricos conseguiram construir a imagem do destino que espera os países centrais.
Um termo cunhado pela tradição marxista para múltiplas finalidades e que parecia não ter mais muito uso no interior do panorama histórico contemporâneo: esta era talvez a melhor definição para “capitalismo de Estado”. Por um lado, o termo designava aqueles países capitalistas cujo Estado aparecia como forte ator econômico e planificador. Tal força fazia com que a livre concorrência no interior do mercado fosse redimensionada através da sua submissão a planos de desenvolvimento econômico de escala variada. Nesse sentido, o conceito de capitalismo de Estado parecia dar conta, principalmente, desses países europeus que optaram pelas vias da construção do chamado “Estado de bem-estar social”, mesmo que Friedrich Pollock, um dos teó-ricos responsáveis pela difusão do termo, o tenha usado também para descrever a realidade político-econômica dos regimes nazistas.  Pois Pollock acreditava na possibilidade de diferenciar um capitalismo de Estado democrático de outro totalitário.
Teóricos marxistas ainda usaram o termo para designar os países de socialismo real, como a antiga União Soviética. Pois se tratava de afirmar que, nesses casos, tínhamos ainda um sistema de produção de mercadorias e de extração da mais-valia, mas agora organizado pelo Estado que, no lugar da burguesia nacional, privilegiava os estratos superiores da burocracia.

Com o beneplácito do governo, a produção de etanol é assegurada por 400 usineiros. Foto: Andre Penne/AP
É fato que um termo com tantos usos distintos pode parecer inutilizável. Ele apontava, porém, para um fenômeno fundamental que talvez nos ajude a lançar luzes sobre certas tendências do capitalismo brasileiro. Pois no interior desse processo de redimensionamento do livre mercado pela força planificadora do Estado não estava em jogo apenas a consciência da necessidade de saber como limitar as tendências de pauperização e desigualdade produzidas pelo capitalismo. 
Se este era, digamos, o ponto positivo dessa forma de capitalismo, havia um ponto temerário. Tratava-se do modelo de associação entre Estado e setores da burguesia nacional que encontravam, nas ações de intervenção estatal, o meio para garantir suas aspirações oligopolistas.  O capitalismo de Estado tendia necessariamente a ser um capitalismo monopolista.  Ou seja, mobilização do -Estado para assegurar um processo de oligopolização da economia pela facilitação da criação e financiamento de grandes empresas, graças a um sistema público de participação e garantias fornecidas pelo Estado. Por meio desses sistemas, grandes empresas tinham, entre outras coisas, acesso a fundos de financiamento a taxas reduzidas de juros. O resultado final era a submissão das dinâmicas de concorrência dos preços e ofertas a uma situação na qual todos os setores fundamentais da economia encontravam-se nas mãos de oligopólios, duopólios e outras formas de cartéis. Algo não muito diferente do que vemos hoje no Brasil. 
Um dos diagnósticos principais que parecem ter norteado a política econômica dos governos petistas foi o fato de que simplesmente não havia mais, no Brasil, política econômica no sentido forte do termo. Os oito anos de governo tucano, a despeito de destruir os restos do “Estado getulista” em sua aliança com a burguesia nacional, aliança que, segundo diagnóstico muito corrente à época, teria bloqueado o desenvolvimento e a inovação, acabara por produzir uma situação de terra arrasada. 

O Brasil entrava no processo de globalização em situação completamente passiva, sem grandes empresas capazes de operar em escala multinacional sustentadas por uma forte política de apoio estatal. Nada estranho para um setor da classe dirigente nacional, associada ao tucanato, que preferia ser integrada ao sistema financeiro global, aproveitando as benesses de sócio rentista minoritário, do que desempenhar o papel de elite dirigista de defesa de interesses nacionais. 
Nesse sentido, o governo Lula representou uma grande ruptura, muitas vezes negligenciada por amplos setores da mídia nacional. Lula compreendeu que os próximos passos do capitalismo mundial caminhariam em direção à reconstrução do capitalismo de Estado. A crise de 2008 deu-lhe completa razão. Utilizando-se de um tripé composto de bancos públicos (que, tragicamente, não existem mais em país desenvolvido algum), empresas privadas com grande participação estatal (como Embraer e Vale) ou empresas públicas (como Petrobras), o governo conseguiu criar uma política econômica anticíclica que se demonstrou extremamente acertada. 

Não era necessário esperar, porém, a crise de 2008 para chegar à conclusão de que o futuro passaria pela reconstrução do capitalismo de Estado. Bastava dar-se conta de que os países que mais cresciam no mundo, como a China e a Rússia, eram marcados por forte histórico de intervenção estatal na economia e que continuam assim até hoje. Não seria errado incluir nesse grupo, mas em menor grau, o motor da economia europeia, a saber, a Alemanha, que, mesmo no governo do liberal travestido de social-democrata Gerhard Schroeder, conservara forte modelo de associação entre Estado e burguesia nacional. Ou seja, já no momento da primeira vitória de Lula, dava para perceber que havia algo de estranho do reino azul do neoliberalismo, a saber, os propulsores do desenvolvimento mundial não eram exatamente economias que rezavam pela cartilha neoliberal. Com a crise de 2008, estes foram exatamente os países que melhor conseguiram sobreviver, isto enquanto pátrias do neoliberalismo, como o Reino Unido e os EUA, apareciam como os pontas de lança da depressão.
Esta não era toda a história, porém. Se, por um lado, o Brasil conseguia escapar das tendências suicidas dos economistas neoliberais, ele estava mais uma vez aberto ao lado negro do capitalismo de Estado: sua tendência oligopolista. Tendência fartamente financiada pelo BNDES.
De fato, é difícil encontrar atualmente algum setor estratégico na economia nacional que não esteja dominado por oligopólios ou duopólios. Telefonia, aviação civil, frigoríficos, comunicação de massa, indústria automobilística. A lista seria incontável e, por muito pouco, não foi acrescida pelos supermercados. Em boa parte desses casos, o processo de oligopolização foi feito pelo financiamento estatal, a despeito da necessidade de criação de grandes empresas capazes de competir no mercado internacional. Mas talvez o setor mais dramático do processo de oligopolização seja a produção de etanol. Ele nos fornece um forte exemplo da maneira com que o desenvolvimento nacional pode ser bloqueado.
Durante anos, o Brasil quis se credenciar como potência mundial do etanol. Recentemente, usineiros disseram que talvez o carro flex não prospere enquanto o preço da gasolina não aumentar. Ou seja, para quem queria exportar etanol para o mundo, esta não era exatamente a melhor notícia. Mas é apenas o sintoma mais claro de um processo de oligopolização do setor feito com o beneplácito governamental.
Hoje, toda a produção brasileira de etanol é assegurada por apenas 400 usineiros. Organizados em cartel, eles definem o preço e o montante de cana a ser transformado em etanol ou açúcar, isso ao levar em conta a rentabilidade das commodities no mercado internacional.  Essa cartelização da produção do etanol foi o resultado de uma decisão governamental que impedia pequenos produtores de comercializar sua produção diretamente com postos de gasolina. Dessa forma, pequenas propriedades foram alijadas do processo produtivo, já que os grandes distribuidores privilegiaram seus acordos com grandes produtores. Se o processo produtivo estivesse focado em pequenos produtores, a oferta seria claramente maior. A produção estaria pulverizada, gerando um efeito benéfico na definição dos preços.

Esse exemplo serve para nos perguntarmos para onde vai o capitalismo brasileiro. É bem provável que seu limite esteja nesse modo de servir-se de um governo de esquerda para reconstruir o núcleo duro do capitalismo monopolista, agora em versão nacional. Hegel costumava dizer que não se ganha nada abandonando um senhor que manda estando fora de nós e abraçando um senhor que manda, mas internalizado em nós. A essência da dominação é a mesma. Isso talvez valha para pensarmos os rumos do nosso país


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