terça-feira, 28 de agosto de 2012

Contra os fundamentalismos, “nós somos aqueles pelos quais estávamos esperando” 28/08/2012



O fascismo veste camisa quadriculada: Paul Ryan à esquerda, com o candidato à Casa Branca Mitt Romney (do site de campanha)
A cultura da crueldade do neoliberalismo
Política autoritária na Idade do Capitalismo de Cassino
por HENRY GIROUX, no Counterpunch, em 27.08.2012
Os Estados Unidos entraram em nova era histórica marcada pelo crescente desinvestimento no estado de bem estar social, nos bens públicos e na moralidade cívica.
Questões de política, ideologia, governança, economia e políticas públicas agora são traduzidas em um desinvestimento sistêmico em instituições e políticas que aprofunda o colapso das esferas públicas, as quais tradicionalmente forneciam condições mínimas para a justiça social, a dissidência e a expressão democrática.
O neoliberalismo, ou o que pode ser chamado de capitalismo de cassino, se tornou a nova norma.
Descarado em sua busca por poder financeiro, autorregulamentação e um sistema de valores em que sobrevivem apenas os mais fortes, o neoliberalismo não apenas solapa a cultura formativa necessária para produzir cidadãos críticos e as esferas públicas que os nutrem, mas também facilita as condições para a produção de um orçamento de defesa inchado, do complexo industrial prisional, da degradação do meio ambiente e da emergência das “finanças como indústria trapaceira e criminosa”.
Está claro que o emergente autoritarismo assombra uma democracia debilitada, agora formatada e estruturada especialmente pelas corporações. O dinheiro domina a política, o fosso entre ricos e pobres está inchando, os espaços urbanos estão se tornando campos armados, o militarismo está surgindo em toda faceta da vida pública e as liberdades civis estão sendo destruídas.
A política de competição do neoliberalismo agora domina a definição de esferas como as escolas, permitindo que sejam retiradas de um projeto cívico e democrático e entregues à lógica do mercado. Infelizmente, não é a democracia, mas o autoritarismo que continua em ascensão nos Estados Unidos quando avançamos no século 21.
A eleição presidencial de 2012 nos Estados Unidos existe como um momento essencial nesta transformação para longe da democracia, um momento em que esferas e forças culturais e políticas — inclusive a retórica usada pelos candidatos — aparecem saturadas pelas celebrações da guerra e do darwinismo social.
Assim, a possibilidade de uma liderança ainda mais autoritária e desfuncional na Casa Branca em 2013 certamente chama a atenção de um grupo de liberais e de outros progressistas dos Estados Unidos.
A política norte-americana em geral e a eleição de 2012 em particular apresentam um desafio aos progressistas, cujas vozes em anos recentes foram crescentemente excluídas tanto da mídia quanto dos corredores do poder.
Em vez disso, a mídia tem dado espaço à visão apocalíptica dos guerreiros fundamentalistas do Partido Republicano, que parecem fixados em traduzir questões previamente vistas como não religiosas — como orientação sexual, educação, identidade e participação na vida pública — na linguagem do revivalismo religioso e da cruzada militante contra o mal.
Não há outra forma de explicar que o candidato nomeado para vice na chapa republicana, Paul Ryan, tenha dito que a batalha do futuro é “uma luta entre o individualismo e o coletivismo”, um aceno para o macartismo e a retórica da guerra fria dos anos 50.
Ou a afirmação de Rick Santorum de que “o presidente Obama está tornando os Estados Unidos viciados ‘no narcótico da dependência do governo’”, promovendo assim a visão de que o governo não tem a responsabilidade de promover redes de segurança para os pobres, os doentes, os deficientes e os mais velhos.
Há mais aqui que simplesmente uma versão revigorada do darwinismo social com sua ética selvagemente cruel de “recompensem os ricos, penalizem os pobres e deixem cada um se virar como puder”: existe também um ataque em ampla escala ao contrato social, ao estado do bem estar social, à busca pela igualdade econômica e a qualquer vestígio viável de responsabilidade moral e social.
A apropriação que Romney-Ryan [a chapa republicana] fizeram da ode de Ayn Rand ao egoísmo é de importância particular porque oferece um vislumbre de uma forma cruel de capitalismo extremo em que os pobres serão vistos com desprezo e como alvo de punições. Mas esta ideologia teocrática do fundamentalismo econômico faz mais que isso.
Destroi qualquer noção de virtude pública na qual o contrato social e o bem comum formam a base para criar laços sociais significativos, dando aos cidadãos um sentido de responsabilidade cívica e social. A ideia de serviço público é vista com desprezo, assim como o trabalho de indivíduos, de grupos sociais e de instituições que beneficiam a cidadania em geral.
Como George Lakoff e Glenn W. Smith apontam, o capitalismo de cassino cria uma cultura da crueldade: “De efeitos terríveis em mortes, doenças, sofrimento, maior pobreza, perda de oportunidades, de vidas produtivas e dinheiro”. Faz mais ainda ao esmagar qualquer noção viável de bem comum e vida pública, ao destruir “os laços que nos mantém juntos”.
Sob o capitalismo de cassino, os espaços, instituições e valores que constituem o público agora se rendem a forças financeiras poderosas e são vistos simplesmente como outro mercado a ser comodificado, privatizado e rendido às demandas do capital.
Com fanáticos religiosos e de mercado no poder, a política se torna extensão da guerra; ganância e interesse pessoal pisoteiam qualquer preocupação com o bem estar alheio; a razão é superada pela emoção baseada em certezas absolutas e em agressão militarista; ceticismo e dissidência são vistas como trabalho de satã.
Se a candidatura republicana de 2012 serve de exemplo, então o discurso político nos Estados Unidos não apenas se moveu para a direita — está introduzindo valores e ideias totalitárias na corrente principal da vida pública.
Fanatismo religioso, cultura consumista e estado de guerra funcionam em parceria com as forças econômicas neoliberais que encorajam a privatização, os incentivos fiscais corporativos, a crescente desigualdade de renda e riqueza e maior fusão entre as esferas financeira e militar para diminuir a autoridade e o poder da governança democrática.
Os interesses neoliberais estão libertando os mercados de constrangimentos sociais, acelerando a competitividade, destruindo os sistemas educacionais, produzindo sujeitos atomizados e tirando dos indivíduos qualquer sentido de responsabilidade social, preparando a população para um lento abraço no darwinismo social, no terrorismo de estado e na mentalidade da guerra — com a destruição dos laços comunitários, a desumanização do outro e jogando indivíduos contra as comunidades em que habitam.
Tentações totalitárias agora saturam a mídia e a cultura geral na linguagem da austeridade como ortodoxia política e econômica. O que estamos testemunhando nos Estados Unidos é a normalização da política que extermina não apenas o estado do bem estar social e a verdade, mas tudo o que carrega os pecados do Iluminismo — ou seja, aqueles que se negam a viver uma vida livre de dúvidas.
A razão e a liberdade se tornaram inimigos não apenas para ser ridicularizados, mas para ser destruídos. E esta é uma guerra cujas tendências totalitárias estão evidentes no assalto à Ciência, aos imigrantes, às mulheres, aos idosos, aos pobres, às pessoas de cor e aos jovens.
O que muitas vezes não é dito, particularmente quando a mídia foca na retórica inflamatória, é que aqueles que dominam a política e a formulação de políticas públicas, democratas ou republicanos, assim o fazem por causa de seu controle desproporcional da renda e da riqueza da Nação.
Crescentemente parece que esta elite escolhe agir de forma a sustentar seu domínio através da reprodução sistemática de uma ordem social iníqua. Em outras palavras, o dinheiro grosso e o poder corporativo governam enquanto a política eleitoral é fraudada.
A cabine de votação secreta se torna a última expressão da democracia, reduzindo a política a uma compra individualizada — uma forma crua de ação econômica. Qualquer forma de política disposta a investir em tal pompa ritualística apenas acresce à natureza desfuncional de nossa ordem social, ao mesmo tempo reforçando o profundo fracasso da imaginação política.
A questão não deve ser mais como trabalhar dentro do atual sistema eleitoral, mas como desmantelá-lo e construir um novo cenário político capaz de reclamar por igualdade, justiça e democracia para todos.
O inspirador chamado de Obama por esperança degenerou numa fuga da responsabilidade. O governo Obama trabalhou para estender as políticas do governo de George W. Bush ao legitimar um arco de políticas domésticas e externas que rasgaram as liberdades civis, expandiram o estado permanente de guerra e aumentaram o alcance doméstico do estado de vigilância punitivo.
E se Romney e seus colegas de ideologia, agora vistos como a mais extrema facção do Partido Republicano, chegarem ao poder, certamente as tendências totalitárias e anti-democráticas em ação nos Estados Unidos serão perigosamente intensificadas.
Um catálogo de provas indiciadoras revela a profundidade e amplitude da guerra em andamento contra o estado social e particularmente contra os jovens.
Além de expor a depravação moral de uma nação que fracassa na proteção de seus jovens, tal guerra demonstra um pervertido desejo de morte, um desejo mal disfarçado de auto-aniquilamento — já que a destruição intencional de toda uma geração não apenas transforma a política dos Estados Unidos em patologia, mas certamente sinaliza a morte do futuro. Quanto mais o público norte-americano terá de esperar antes que o pesadelo tenha fim?
A consciência dos elementos culturais e materiais que produziram essas condições profundamente anti-democráticas é importante; no entanto, não é o suficiente.
A resposta coletiva precisa incluir uma recusa ao atual discurso político de compromisso e acomodação — é preciso pensar além do discurso das concessões fáceis e conduzir as lutas em terrenos mutuamente informados de alfabetização cívica, educação e poder.
Uma rejeição das formas tradicionais de mobilização política precisa ser acompanhada de um novo discurso político, que revele as práticas obscuras da dominação neoliberal, com o desenvolvimento de modelos rigorosos de reflexão e formas renovadas de engajamento intelectual e social.
Ainda assim, o atual momento histórico parece sem saída para criar um movimento social massivo capaz de enfrentar a natureza totalitária e os custos sociais do fundamentalismo religioso e político que se funde ao extremo fundamentalismo de mercado.
Neste caso, um fundamentalismo cuja ideia de liberdade não se estende além do ganho financeiro pessoal e do consumo sem fim.
Sob tais circunstâncias, os progressistas deveriam focar suas energias no trabalho com o movimento Occupy e com outros movimentos sociais para desenvolver uma nova linguagem de reforma radical e para criar novas esferas públicas que tornem possíveis os tipos de pensamento crítico e ação engajada que são as fundações de uma democracia radical e verdadeiramente participativa.
Tal projeto precisa desenvolver vigorosos programas educacionais, formas de comunicação pública e comunidades que promovam a cultura da deliberação, do debate e da importante crítica pública, numa ampla variedade de sites culturais e institucionais.
Finalmente, precisa focar no objetivo final de criar esferas públicas e formativas que são a pré-condição do engajamento político, vitais para energizar os movimentos democráticos por mudança social — movimentos dispostos a pensar além dos limites do capitalismo selvagem global.
A pedagogia, neste sentido, se torna central para qualquer noção substantiva de política e precisa ser vista como elemento crucial da resistência organizada e de lutas coletivas.
Os elementos profundamente reacionários do neoliberalismo constituem tanto uma prática pedagógica quanto uma função legitimadora de uma ordem social profundamente opressiva. As relações pedagógicas do capitalismo de cassino precisam ser desvendadas e desafiadas.
Sob tais circunstâncias, a política se torna transformativa, em vez de buscar compromissos e deve se voltar para abolir um sistema capitalista marcado por maciças desigualdades econômicas, sociais e culturais. Uma política que desvende as duras realidades impostas pelo capitalismo de cassino deveria trabalhar pelo estabelecimento de uma sociedade na qual as questões de justiça, igualdade e liberdade sejam entendidas como a fundação crucial da democracia substantiva.
Em vez de investir em política eleitoral, valeria mais a pena para progressistas desenvolver as condições formativas para tornar possível uma verdadeira democracia.
Como Angela Davis sugeriu, isso significa engajar “em difíceis processos de construção de coalizões, negociando o reconhecimento que as comunidades inevitavelmente buscam e se reunindo em torno de uma unidade que não é simplista e opressiva, mas complexa e emancipadora, reconhecendo, nas palavras de June Jordan, que “nós somos aqueles pelos quais estávamos esperando”. Desenvolver um movimento social amplo significa encontrar campo comum no qual desafiar formas diversas de opressão, exploração e exclusão pode se tornar parte de um esforço mais amplo para criar a democracia radical.
Em parte, isso significa retomar o discurso da ética e da moralidade, elaborar um novo modelo de democracia política e desenvolver novos conceitos analíticos para entender o social. Uma avenida para desenvolver a política crítica e transformativa é se inspirar nos protestos de jovens de todo o mundo para desenvolver novas formas de desafiar os valores corporativos que dão forma à política dos Estados Unidos e, crescentemente, do mundo.
É especialmente crucial criar valores alternativos que desafiem as ideologias dirigidas pelo mercado, que igualam liberdade com individualismo radical, auto-interesse, super-competitividade, privatização e desregulamentação, ao mesmo tempo em que solapam os laços sociais, o bem público e o estado de bem estar social.
Tais ações podem ser reforçadas com o recrutamento de jovens, professores, sindicalistas, líderes religiosos e outros cidadãos engajados para se tornar intelectuais públicos que estejam dispostos a usar seu conhecimento para tornar visível como funciona o poder e para tratar de importantes questões políticas e sociais.
Naturalmente, o público norte-americano precisa fazer mais que falar. Também precisa reunir educadores, estudantes e trabalhadores e qualquer pessoa interessada em democracia real para criar um movimento social — um bem organizado movimento capaz de mudar as relações de poder e as vastas desigualdades econômicas que criaram as condições para a violência simbólica e sistêmica na sociedade norte-americana.
Tratar de tais desafios sugere que os progressistas terão de invariavelmente assumir o papel de ativistas educadores. Uma opção seria criar micro-esferas de educação pública que fortaleçam modos de aprendizagem crítica e de agência civil, permitindo a jovens e outros que aprendam como governar em vez de como serem governados.
Isso poderia ser alcançado com uma rede de espaços educacionais livres desenvolvidos em diversas comunidades e escolas públicas, assim como em organizações seculares e religiosas afiliadas a instituições universitárias. Estes novos espaços educacionais focados no cultivo tanto do diálogo quanto da ação em defesa do interesse público, poderiam usar modelos desenvolvidos no passado, nestas instituições, por socialistas, sindicatos e ativistas dos direitos civis do início do século 20 e dos anos 50 e 60.
Tais escolas representaram esferas públicas de oposição e funcionaram como esferas públicas democráticas no melhor sentido educacional, desde a rede radical de escolas dominicais até a Universidade do Trabalho de Brookwood e a Highlander Folk School do Tennessee.
Stanley Aronowitz insiste que “o atual sistema sobrevive na eclipse da imaginação radical, na falta de oposição viável com raízes na população em geral e no conformismo de intelectuais que, em geral, foram subjugados por suas cadeiras seguras na academia; em empregos menos seguros no setor corporativo privado e em instituições de mídia de centro ou de centro-esquerda”.
Num momento em que o pensamento crítico foi achatado, se torna imperativo desenvolver um discurso de crítica e possibilidades —  um discurso que reconheça que sem uma cidadania bem informada, lutas coletivas e movimentos sociais dinâmicos, a esperança de um futuro democrático viável escape de nosso alcance.
*Henry A. Giroux holds the Global TV Network chair in English and Cultural Studies at McMaster University in Canada. His most recent books include: “Take Back Higher Education” (co-authored with Susan Searls Giroux, 2006), “The University in Chains: Confronting the Military-Industrial-Academic Complex” (2007) and “Against the Terror of Neoliberalism: Politics Beyond the Age of Greed” (2008). His latest book is Twilight of the Social: Resurgent Publics in the Age of Disposability” (Paradigm).

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